quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Milagre de Natal



Ele iniciara seu trajeto como um peregrino comum. Caminharia até onde o corpo aguentasse em direção à cidade de Aparecida (SP) para fazer um pedido à Padroeira do Brasil. Morava na periferia da Capital de São Paulo. Perdera o emprego, em consequência foi-se a casa que estava pagando, logo em seguida a mulher o abandonara e fugira com outro levando seu único filho. Agora precisava de um milagre para colocar a vida em ordem. Queria um milagre de Natal. Dada à situação em que se encontrava, parecia uma criança que acreditava em Papai Noel.
Era dezembro quando começara a caminhada com esse objetivo, mas, com o passar dos dias e com a falta de tudo, trocara a comida pela água ardente e, sem dinheiro, fuçava lixeiras à procura do que comer tornando-se um “vadio de seus caminhos”, nem mais sabendo pra onde ia e com que objetivo. Um caminhante sem destino até esquecido de onde viera. Parava quando encontrava amigos de infortúnios e partia quando estes se transformavam em inimigos com cada um pra si.
Mesmo com o peso de um saco nas costas, que nem mais sabia porque carregava algo que a cada passo pesava mais, não se desvencilhava dele por nada. Sabia ler, disso não se esqueceu, e então, certa vez, saindo do acostamento da via principal por onde caminhava deparou-se com uma placa de boas vindas com o nome de uma cidade: Jacareí. Na sua pouca lucidez, lembrou-se da Santa Padroeira que procurava e cuja imagem, ouvira dizer, havia sido atirada no rio Paraíba do Sul, nessa cidade e arrastada pelas águas. Depois, a quilômetros mais adiante, foi encontrada por pescadores. O local tornou-se a cidade que hoje leva o nome de “Aparecida”.
Quem sabe o milagre que procurava estivesse ali? Afinal nem sabia mais se queria chegar à cidade antes programada. Conseguiu matutar, misturando ideias de ilusões, sonhos infantis e pegou o caminho que levava à região central. Andando a esmo, atravessou a ponte sobre o grande rio que corta a cidade e foi parar no ponto onde existe uma capela à margem dele.
Percebeu que Jacareí estava enfeitada para o Natal. Ele não tinha a intenção de comemorar nada, mas quem sabe o nascimento do Filho de Deus trouxesse um presente? Ele já nem sabia o que desejava, nem sabia mais o que pedir. Era um sem teto, sem ambições, sem pedido a fazer. Atordoado por esses pensamentos entrou na capela.
Sujo e notado pelos poucos que frequentavam a igreja no momento, era a tarde que antecedia a noite de Natal (ele perdera a noção do tempo) ajoelhou-se longe de todos para que não sentissem sua incômoda presença. A sombra e a quietude do local transmitiram-lhe paz. Ele apenas rezou. Rezou a Deus sem pedir nada, sabendo que Ele daria o que achasse que ele necessitava e trazia dentro do seu coração. Rezou diante de uma imagem da Padroeira ali exposta. Descansou.
Antes que cochilasse, saiu dali. Ao descer as escadas e dar com a calma da pequena praça fronteiriça, de árvores grandes margeando o rio, um grupo de pessoas se aproximou e ofereceu ajuda, que ele aceitou. Foi levado a um albergue municipal que cuida temporariamente de caminhantes como ele. Banhou-se. Tomou uma sopa reconfortante, até com medo de que lhe fizesse mais mal do que bem, visto que seu organismo acostumara a receber aguardente em vez de comida. Deitou-se em colchão macio, de roupas cheirosas. Dormiu como indigente limpo.
Acordou no dia seguinte como homem de bem. Assustado, é verdade, pois até o dia anterior fora um desconhecido para ele mesmo. Religava-se o cérebro embotado. Reconheceu-se. Lembrou-se de tudo o que havia esquecido. Não procurou pelo saco que carregava. Sentia-se descompromissado. Leve, livre, descansado. Depois do café, agradeceu por tudo e saiu. Sabia quem era e o que desejara até a véspera. O milagre acontecera.
Sentia-se um cidadão de bem, com roupas limpas. Não precisava ir até a cidade prevista no início daquela loucura. Continuava não tendo nada, mas alimentava a vontade de lutar contra o dragão que o havia sufocado até aquele momento. Agora tinha um objetivo na vida. Pediu ajuda pra voltar pra sua cidade, sabendo que os milagres estão em todos os lugares. Aquela cidade colaborara com o que ele precisava. Deus agiu certo no momento exato e no local permitido.
Se tivesse perguntado, saberia que a capela onde fora socorrido era de Nossa Senhora Aparecida, erguida no ponto onde se acredita ter sido lançada no rio a imagem da Imaculada Conceição no século 18, depois encontrada por pescadores quilômetros adiante. A cidade de Jacareí, entretanto, nunca mais sairia de sua mente. Ali era o lugar de seu presépio mental e eterno. O nascimento de Jesus o fizera renascer e operara o milagre procurado. Era Natal!

Autor: Paulo Ramos
Membro da Academia Jacarehyense de Letreas
Cadeira nº 2 – Patrono: Antônio Afonso


Um comentário:

  1. Conto denso, Paulo. Gostei. Foge dos "clichês" dos contos de Natal. Sugiro que desengavete os vários outros contos que você já escreveu e publique-os para o mundo. Tenho certeza de que você ganhará adeptos.

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